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domingo, 12 de abril de 2020

Entrevista : Mamá (Teu pai já sabe?/Vaca Louca café vegetariano)



"Tem alguma coisa errada, e agente precisa refletir sobre isso. Agente precisa levar o Hardcore para periferia, agente precisa fazer com que as pessoas LGBTs e a comunidade negra, se sintam a vontade. Porque se não tem pessoas negras, LGBTs no Hardcore, tem alguma coisa errada. Existe algum desconforto, algum incomodo dessas pessoas para com o meio que agente acredita tanto, como um meio tão revolucionário, um meio tão aberto e livre de preconceitos. Fica ai essa reflexão."

 
Salve! Nessa entrevista houve alguns imprevistos, tivemos que refaze-la por conta de problemas relativos a toda essa tecnologia que eu domino pouco(quase nada). Mas enfim saiu, e valeu muito a pena. Conversei com o Mamá, pessoa querida, vocalista da banda Queerpunk Teu Pai Já Sabe?, empresário dono sócio do Vaca Louca Café Vegetariano. 

Vaca Louca Café Vegetariano

Teu Pai Já Sabe?


Eu o conheci através do seu antigo projeto "Da próxima vez eu mato você" , inclusive tivemos uma tarde juntos aqui em Rolândia em 2008 quando vieram se apresentar . Você falou sobre roles antigos em Maringá , Curitiba . Mas quando e onde foi seu primeiro contato com a cena punk ?

Meu primeiro contato com o punk foi em 1989 mais ou menos,eu trabalhava em um escritório de contabilidade, e aqui em Maringá já tinha uma galera com um visual mais Thrash , colete com patch pintado a mão, e aquilo sempre me chamou muita atenção. Quando eu tive oportunidade de comprar meu primeiro toca disco , fui ao Porão disco, e o And, que depois se tornou dono da loja, tinha vindo de Brasília, e ele já tinha um Fazine na época, chamado "The Wild Side", se não me engano é uma musica do Lou Reed. Não me lembro mas, se não me engano foi o primeiro do Toy Dolls, e começamos a conversar, e ele me deu um Fanzine, e através do Fanzine que tive esse primeiro contato com o Punk Underground. Comecei a frequentar o Porão, me tornei muito amigo do And, e ele já era um cara avançadíssimo, tinha muito disco, tinha vindo de Brasília , já tinha visto muita coisa legal, antes de 89, as bandas, os shows, o movimento punk de Brasília, aprendi muito com ele. Já conhecia o Docão, e um outro cara chamado Adriano que hoje não tem mais nada a ver, e agente começou a dar role, íamos na casa do fliperama pós trabalho, matava aula e ficávamos ali conversando, tinha uma outra panificadora que agente ficava no centro da cidade , falávamos de som, de nossos desejos de como o mundo deveria ser, aquela coisa bem vaga sobre anarquismo e revolução, mas basicamente era mais musica, não tinha muita informação e nem dinheiro.No Porão comprávamos a fita e com mais um pouco de dinheiro ele gravava os discos pra agente, e ficava baratinho, e começamos a ter acesso a informações de bandas. Quando comecei ter contato com fanzines, comecei a mandar muita carta, criei uma rede de contatos muito grande, minha mãe ficava abismada, o correio passava a cada dois dias no meu bairro que era mais afastado e trazia dezenas de cartas cada vez que vinha. 20 cartas, 30 cartas. Eu passei a escrever muito para coletivos, bandas, pessoas, e foi ai que comecei a me interessar mais pelo movimento anarcopunk, vegetarianismo, foi ai que tudo começou.










Sem querer chama-lo de velho hehe, mas você viveu uma época mais "romântica" da cena. Troca de cartas ,a informação era de difícil acesso em comparação aos dias atuais , que recebemos dezenas de e-mails de bandas novas diariamente, tinha que correr atrás . De lá pra cá foi muito chão . A forma como consumimos música , etc . O que você poderia destacar dessa experiência vivida, e o que sente falta hoje em dia ? Pergunta saudosista . Hehe

Cara, realmente, pode se dizer que foi uma época bem romântica mesmo, e para vocês também né? de Rolândia, Maringá, interiores no geral. Eles tinham difícil acesso, era difícil você comprar disco,  o máximo que você conseguia, para quem era pobre, proletariado , era gravar uma fitinha, tirar xerox da capa, essas coisas. Então, rolava muita carta e troca de informação, muita troca de fanzine, muita troca de fita K7, eu tenho até hoje uma coleção enorme, e era muito legal, eu gostava muito de ter cartas. Quando entrou a era da internet, que a galera começou a usar, eu tava me mudando para Curitíba, e eu nunca tinha feito um curso de computação, nem sabia mexer, era jacu pra caralho, eu perdi muito contato, porque todos meus amigos se atualizaram, o pessoal que tinha um pouco mais de oportunidade, um pouco mais de grana, compraram seus computadores, usavam e-mails, ai aconteceu que quem usava muito esses meios de cartas, e não tinha acesso a computadores, perderam muito o contato, perderam muitos "amigos" para essa era digital. O que eu gosto bastante daquela época é que o esforço que agente fazia para ter um material, um disco, um fanzine, uma fita k7 de uma banda local lá de Piaui , era tão grande esse esforço para ter esse material que quando agente tinha, agente absorvia ele ao máximo, o que é raro hoje em dia. Agente escutava a fitinha ali, com encarte feito no xerox, muitas vezes feito a mão mesmo, as vezes não tinha dinheiro para pagar o xerox , e fazia a mão,  colocada todas as letras, tudo direitinho, se tinha dez musicas, colocava as dez letras ali, agente acompanhava na fitinha e ia lendo as letras , absorvia ao máximo o que a banda tinha a dizer. Isso era muito legal, e os fanzines eram muito legais, quando agente tinha acesso, agente fazia o favor de fazer xerox, passar para outras pessoas, o espírito de coletividade era muito maior, principalmente com o pessoal que tinha pouco acesso. isso dessa época eu sinto muita saudade. Hoje em dia, como um velho amigo meu diz, "as coisas se reciclaram". Sim, hoje as coisas que acontecem são muito importantes, eu respeito e concordo com ele, mas acabou aquele romantismo , e a coisa tá muito acelerada. Saiu um disco novo hoje, ou um fanzine, você tá lendo ele e enquanto isso já saiu mais 10, ai você não consegue acompanhar, você não consegue ler tudo ou ouvir direito aquele disco, porque já saiu outro lançamento, uma outra banda que você gosta, um outro fanzine, uma outra matéria, um outro podcast, então você acaba não acompanhando nada direito. Você tem muito acesso a informação, mas não tem tempo para absorver direito tudo o que a mídia coloca disponivel na rede. Esse é um lado negativo, você nunca consegue absorver bem, como deveria.

Cara sobre a militância , hoje em dia há um espaço mais amplo para debate, embora haja um ódio mortal embasado em preconceito e preceitos religiosos , foi aberto um espaço a força tipo "ei eu existo, eu estou aqui e tenho meu direito a vida, ao amor, ao respeito" . Teu pai já sabe ? É uma banda  sensacional , e  levanta a bandeira Queerpunk , e antes disso, você já participou de outros projetos que levantavam essa bandeira contra homofobia , entre outras lutas. Eu te vejo como um ícone dessa militância no underground brasileiro . Me fala um pouco a respeito dessa jornada .
 
Carlão fico feliz por você me ver dessa forma, com todo esse respeito. Antes do "Teu Pai Ja Sabe?" já me envolvi em outros projetos sim, lá em Curítiba quando eu andava com o pessoal do Family, Escola russa de ballet, White Christian Disaster, com toda essa galera. E não por eles, mas pela cena no geral, agente notava que faltava muita discussão sobre esse assunto, não se falava. Não se falava pelo fato de ser meio que um tabu e não porque não havia necessidade de se falar sabe? e ai agente sentiu a necessidade de ter um coletivo, alguma coisa que falasse disso nos shows. Foi ai que eu, o Paulo que é meu companheiro, Felipe e o Leo fizemos o marinheiro, que era um coletivo de luta anti homofobia dentro do punk hardcore. Então todo show que tinha, agente levava material, textos, comecei fazer umas camisetas de tema, gênero, para criar uma discussão, uma reflexão sobre o assunto, e foi bem válido, bem interessante, porque esses materiais se espalharam pelo Brasil todo, e muita gente nos contactava pelo e-mail falando que participava da cena punk "não sei da onde", mas nunca se sentia a vontade em dizer que era gay ou lésbica, ou trans, ou bi, entendeu? Então agente começou a ver a real necessidade de começar a abordar e falar sobre isso nos shows. Um tempo depois, logo após o primeiro Carnaval Revolução, que tinha em BH, agente resolveu montar uma banda e ela se chamava Política e Purpurina, era um power violence toscassa, mas o tema era esse, falava sobre gênero, sobre homofobia , sobre LGBTfobia no geral. Logo depois agente montou a Gayohazard, que é uma banda que agente viu muita necessidade de ter ela naquela época, porque estava em um auge muito grande das bandas de hardcore novaiorquino, mosheras, com aquele testosterona a mil. Era uma coisa meio bizarra, pra gente pelo menos, ver que o Hardcore era feito só pra gente branca,  homem , hétero, e fizemos o Gayohazard justamente para bater de frente com isso. Era uma banda que tocava meio Mosh, um Hardcore bem pesado, e letras gays, bem sarcásticas, eu gosto dessa coisa do sarcasmo, do deboche,quebra um pouco da seriedade e parece que as pessoas prestam um pouco mais atenção. Agente tocou bastante, nem todo mundo era gay na banda, mas todo mundo comprou essa ideia e foi bem bacana. Depois que essas bandas acabaram, continuamos com o coletivo, com o espaço Casa Ponte, que foi bem importante em Curitiba , que era um espaço libertário bem bacana onde passou gente do mundo inteiro. Agente também conversou muito sobre isso, e então veio o Teu pai já sabe?, que foi numa conversa com o irmão de uma amiga minha, que tocava bateria e é gay, o Hugo que toca com agente até hoje. Sobre levantar as bandeiras, isso é tão importante quanto falar sobre o racismo , por exemplo. Eu lembro que no Da próxima vez eu mato você, nós tínhamos uma pessoa negra apenas, que era a Lilian, que hoje está na Alemanha, e agente conversava muito sobre isso. em Curitiba nós víamos como o hardcore estava muito errado no sentido que, ele estava nos grandes centros, ele não estava na periferia, ele é um mecanismo que deveria ser de reflexão, evolução, e ele acaba ficando no centro, para pessoas privilegiadas, brancas, e isso e bem errado cara, ele é justamente a contra mão disso. Então agente falava muito disso no Da próxima vez eu mato você, sobre essa questão do racismo, da gente olhar em volta nos shows e só ter a Lilian de preta. A Lilian e o Dudu que era um amigo que colava em todos os nossos roles. Mano, o resto era todo mundo branco, sabe? Tem alguma coisa errada, e agente precisa refletir sobre isso. agente precisa levar o Hardcore para periferia, agente precisa fazer com que as pessoas LGBTs e a comunidade negra, se sintam a vontade. Porque se não tem pessoas negras, LGBTs no Hardcore, tem alguma coisa errada. Existe algum desconforto, algum incomodo dessas pessoas para com o meio que agente acredita tanto, como um meio tão revolucionário, um meio tão aberto e livre de preconceitos. Fica ai essa reflexão.


Hoje você está com o Vaca Louca Café Vegetariano , que é uma cafeteria em Maringá, muito boa por sinal , acompanho pelo Instagram , fico devendo uma visita aí com certeza . Mas como foi a escolha pra começar trampar nesse ramo culinário ? e também a questão Vegan que sempre foi importante pra você e está lá de uma forma até descontraída sendo propagada pela cafeteria através de postagens , vídeos, etc.

Atualmente eu e meu companheiro tocamos o Vaca Louca Café vegetariano. Agente vai muito além do paladar,e deixamos isso bem claro. Desde que almejavamos ter um espaço físico vegetariano, a ideia era que ele fosse, principalmente, muito político, e agente acha que o veganismo é totalmente político. Sempre em uma luta constante de conscientização, não de doutrinação, nada disso, mas agente tá sempre falando de libertação animal e humana. Pra gente, uma coisa não se dá, sem a outra. Não adianta a pessoa falar sobre libertação animal e não respeitar o ser humano também, as diferenças, as diversidades. O veganismo entrou de uma forma muito direta, pra mim foi na adolescência, eu estava em londrina em um festival, feito por um coletivo que o Cientista fazia parte,  e vieram varias bandas de São Paulo na época. Eu tinha muito contato com o pessoal anarcopunk mas ainda não conhecia o pessoal Straight Edge, e nesse dia veio uma leva de pessoas punk Straight Edges ,e lembro que uma dessas bandas fez essa fala sobre você gostar de alguns animais e se alimentar de outros animais, e isso me tocou muito, porque desde criança eu sempre fui de resgatar animais da rua e levar para casa, minha família sempre foi de cuidar de animais de rua, então eu parei pra pensar, já que eu resgatava animais, levava pra casa, cuidava, por que que eu comia outros animais? dai do dia pra noite, eu me tornei vegetariano e depois vegano. No Vaca agente procura sempre dar uma alfinetada, ainda mais na situação política atual, agente gosta de mostrar de que lado agente esta, que briga agente comprou, muitas vezes de forma discontraída, no sarcasmo também , muitas vezes sério, mas eu acho muito importante agente colocar esses recortes, colocar essas pontuações dentro do nosso espaço, através das redes, porque acaba selecionando os clientes que vão no nosso espaço. Eu não me sentiria a vontade com uma pessoa com a camiseta do Bolsonaro dentro do nosso café, ninguém no café se sentiria, agente é um café antifascista , as pessoas que trabalham lá são antifascistas, então agente deixa bem claro na rede, o que é o café, qual o propósito dele, porque que agente tá ali, e que vai muito além do paladar. Agente tem uma cartela de clientes muito bacana. um exemplo disso é esse momento que estamos passando, agente não esta com o espaço aberto, mas colocamos um delivery feito de bike, moto e essas pessoas tem somado demais com agente. Então cada vez que agente entrega um lanche, agente recebe uma fala, um sorriso, agradecimento. Na internet só estão sendo elogios, agente tem tomado muito cuidado com tudo, com higiene principalmente, então isso esta sendo bem gratificante. Você ve a resposta das pessoas ao carinho que agente transmite no nosso espaço, pela política que passamos através de nosso espaço. É fruto de nossa militância diária.


Voltando um pouco pra banda . Maior parte dos membros da banda são de outras cidades né ? Como está rolando e o que estão aprontando para um futuro próximo ?

Alguns anos atrás, agente resolveu sair de Curitiba e voltar para Maringá, para ficarmos mais próximos de nossas mães. Juntamos um dinheiro que tinhámos com o hot dog de rua que tinhámos em Curitiba, e montamos o Vaca Louca aqui. E a banda tinha ficado em hiato, porque o Felipe tinha ido pra São Paulo, acabou indo morar e trabalhar por lá, então na banda ficou, duas pessoas em Curitiba, o 7metros e o Hugo, o Felipe em São Paulo, e eu em Maringá. Seis meses se passaram e vimos que tinhámos a necessidade de continuar a banda, porque recebíamos muitas mensagens do pessoal dizendo que a banda não devia parar, e que a banda foi muito importante na vida de um e de outro, relatos que realmente foram bem fodas, bem legais. E como todo mundo é bem amigo, conversamos e decidimos voltar. Mas do nosso jeito, com o tempo que agente tem pra ensaiar, pra tocar, fazer menos shows, e todos concordaram. Uma vez por mês eu vou para Curitiba ensaiar, e agente tenta fazer musica nova, estamos compondo um disco novo, é tudo bem lento, mas o importante é não parar. A força de continuar é maior. Agora com a saída do 7metros, ficou um pouco mais complicado, e dai o Chico, um amigo que já tocou com agente em algumas turnês, ele resolveu tocar com agente novamente, eu coloquei no Facebook que estávamos precisando de alguém e ele se ofereceu, e tá dando muito certo cara. O Chico é um cara muito foda,  ele mora perto de Curitiba, em Apiaí, agente combina e todo mundo vai para Curitiba no fim de semana e agente ensaia, faz musica nova, conversa, se vê, e marca os shows também.

Legal mama , eu encerro aqui a entrevista e agradeço demais por ter investido seu tempo aqui nesse humilde projeto . Torço para que essa fase passe logo para eu poder ver um show do Teu pai já sabe? e poder visitar o Vaca Louca ai em Maringá , Obrigado e deixo esse espaço aberto para suas considerações finais, um abraço! 

Escutem bandas com meninas, escutem bandas de meninas , escutem bandas com LGBTQIA+, é muito importante que crie uma visibilidade em cima dessas bandas, o Punk Hardcore sempre foi um espaço com pessoas LGBTQIA+ , então é muito importante que todo mundo saiba disso, não tratar esse assunto como tabu, e tentar amadurecer cada vez mais o nosso cenário, para que ele não seja mais uma reprodução hétero normativa ou conservadora,  o que não tem nada a ver com o Punk Hardcore.
Carlão , obrigado pela oportunidade, foi um prazer responder as perguntas, valeu pela paciência de esperar eu responder, por conta do meu tempo, e espero que as pessoas gostem!


















 

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